sexta-feira, 30 de dezembro de 2005

Café

“Ela está debaixo do duche. A água cai-lhe sobre o corpo e detém-se na formação de repentinas estalactites no abismo daqueles seios que beijaste durante tantas horas. Pões café no filtro, calculas a quantidade de água para quatro chávenas e carregas no botão encarnado.

Ouves o som da água que ferve electricamente e que gota a gota vai caindo sobre o café, formando aquele lodo aromático. Argamassa que une os tijolos da manhã.

Ela aparece com o seu roupão de banho atado descuidadamente. Podes ver-lhe as coxas reluzentes, ainda húmidas. Retiras a cafeteira, leva-la para a mesa, dispões as chávenas, verificas que os cravos persistem na sua agónica estrutura rósea. Não são tão puramente perecíveis como as rosas de maio.

Aparece agora com uma toalha atada como um turbante, podes ver-lhe a nuca, o pescoço liso e fresco, a cheirar a pó de talco. Debaixo do turbante uma pequenina mecha de cabelo escapa às intenções de secagem e adere à pele com aquela estranha presença de loira petrificação. Ela senta-se, tu também, e, à vossa frente, ocupa o seu lugar o silêncio de sempre.

Serves o café lentamente, estendes a mão para ela com a chávena servida, enches a tua, ofereces-lhe com o olhar as coisas que estão em cima da mesa. Pão, manteiga, marmelada e outros alimentos que aquela hora e naquelas circunstâncias te parecem absolutamente insípidos. Verificas que ela não aceita, que simplesmente acende um cigarro e deita umas gotas de leite na sua chávena de café.

Com a colher realizas breves movimentos circulatórios que vão formando espirais, até que verificas a total dissolução do açúcar, que se desfez em pó de espelhos num poço, silenciosamente, respeitando assim o carácter intocável desta manhã-silêncio que começa.

Ela é finalmente a primeira a provar o café. E a sua primeira ideia é que talvez a chávena estivesse suja. Ergue os olhos fita-te sem recriminações no mesmo instante em que tu bebes o primeiro sorvo e pensas que talvez seja o cigarro o responsável por aquele sabor inqualificável, mas é ela que o diz:

- Este café sabe a fracasso.

Então levantas-te, tiras-lhe a chávena da mão, pegas na cafeteira e deitas todo o líquido no lava-loiça.

O café desaparece entre bolhas quentes e fica apenas uma obscura presença em redor da saída por onde desaguou. Abres um novo pacote, calculas a água para quatro chávenas e estás de pé à espera de que gota a gota, se vá formando outra vez aquela porção de lodo matinal.

Serves. Ela prova. Olha para ti tristemente. Não diz nada. Bebes da tua chávena e olhas para ela. Agora és tu que dizes:

- Pois é. Sabe a fracasso.

Ela diz benevolente, que pode ser coisa do açúcar ou do leite, e tu gritas que não puseste nem leite nem açúcar na tua chávena.

Acende outro cigarro e empurra a sua chávena ate ao centro da mesa, enquanto tu tiras todos os pacotes de café que guardas na despensa e com a ponta de uma faca os vais abrindo, vais apalpando frenético a sua fina textura com os dedos, provas, cospes, amaldiçoas, verificas que todo o café da casa tem o mesmo inevitável sabor a fracasso.

Ela não provou nenhum e também o sabe.

Diz-to sem palavras. Diz-to com o olhar perdido nos desenhos poliédricos da toalha. Diz-to com o fumo que se lhe escapa entre os lábios.

Regressas à cadeira sentindo uma espécie de tijolo na garganta. Queres falar. Queres dizer que tomaram juntos muitos cafés com sabor a esquecimento, com sabor a desprezo, com sabor a ódio amável e monótono. Queres dizer que esta é a primeira vez que o café tem este desesperante sabor a fracasso. Mas não consegues articular uma só palavra.

Ela levanta-se da mesa. Vai até ao quarto ao lado. Veste-se lentamente e chega-te aos ouvidos o clique da pulseira dela. Avança até à porta pega nas chaves, na carteira, no pequeno guia turístico, pensa em qualquer coisa antes de abrir a porta e volta para trás até ao teu lugar para te estampar na boca um beijo frio, que, acredites ou não, tem o mesmo sabor a fracasso do café.”

“Café”, Encontro de Amor Num País em Guerra, Luis Sepúlveda


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